A Lenda da Cidade Encantada no Brasil

No imaginário popular brasileiro, a fronteira entre o real e o mágico é, muitas vezes, tênue. Enquanto a geografia oficial mapeia capitais, estradas e rios, a geografia mítica do Brasil abriga locais que não constam no GPS, mas que residem profundamente na psique de seu povo. Entre esses lugares, nenhum é tão sedutor, recorrente e complexo quanto a Cidade Encantada.

Diferente de lendas sobre criaturas isoladas (como o Saci ou o Curupira), a lenda da Cidade Encantada não fala de um ser, mas de uma civilização. Ela narra a existência de reinos prósperos, repletos de ouro, justiça e imortalidade, que foram ocultados dos olhos humanos por feitiços poderosos, catástrofes divinas ou maldições históricas. Elas estão submersas em lagoas escuras, escondidas sob dunas de areia alva ou invisíveis no topo de montanhas rochosas.

Este artigo propõe-se a desbravar esse mito, explorando suas manifestações mais famosas — de Jericoacoara aos Lençóis Maranhenses, passando pelo Sertão do Pajeú — e analisando como a esperança, a história colonial e o misticismo se fundiram para criar a utopia brasileira do desencantamento.

1. O Conceito: O Que é uma Cidade Encantada?

Para compreender a lenda, é preciso primeiro entender a natureza do “encantamento” (o encante) na cosmovisão brasileira. Uma Cidade Encantada não é uma cidade morta ou uma ruína arqueológica. Pelo contrário, ela é descrita como um local onde a vida pulsa em uma frequência superior. Seus habitantes não envelhecem, a fartura é infinita e a arquitetura é feita de materiais preciosos (cristal, ouro, diamantes).

A tragédia da lenda reside na inacessibilidade. A cidade está “aqui”, mas em outra dimensão vibracional. O “desencantamento” é a chave narrativa: quase todas as lendas oferecem uma fórmula para trazer a cidade de volta à nossa realidade. Geralmente, isso exige um ato de coragem extrema, o derramamento de sangue ou a quebra de um tabu por um “escolhido”.

Essa narrativa ressoa profundamente no Brasil, um país marcado por desigualdades, onde a promessa de um reino mágico de abundância serviu historicamente como um refúgio psicológico para populações marginalizadas.

2. O Ciclo do Ceará: A Princesa das Dunas de Jericoacoara

Uma das versões mais poéticas e conhecidas da Cidade Encantada encontra-se no litoral do Ceará, especificamente na famosa praia de Jericoacoara. Hoje um destino turístico cosmopolita, “Jeri” guarda em suas raízes uma lenda anterior à chegada da eletricidade e dos hotéis de luxo.

A Lenda da Princesa Serpente

Conta a tradição que, sob o Serrote (a formação rochosa onde se encontra o farol), existe uma cidade magnífica, com palácios de ouro e ruas pavimentadas com pedras preciosas. Esta cidade é governada por uma princesa de beleza incomparável. No entanto, devido a uma maldição antiga, a princesa foi transformada em uma gigantesca serpente (ou, em algumas versões, um jacaré com escamas de ouro).

Ela habita uma gruta subterrânea, cujas entradas são guardadas pelo mar e pelas pedras. Dizem os pescadores mais antigos que, em noites de lua cheia ou maré específica, é possível ouvir o lamento da princesa ou ver o brilho da cidade emanando do fundo das águas ou de fendas nas rochas.

O Ritual do Desencante

A lenda de Jericoacoara possui uma condição sangrenta para a libertação. Para que a cidade emerja e a princesa retome sua forma humana — trazendo riqueza para toda a região — é necessário um sacrifício. Um homem corajoso deve entrar na gruta, encontrar a serpente e, sem tremer de medo, fazer um corte em sua cauda (ou cabeça, dependendo da versão) com uma faca virgem, extraindo três gotas de sangue. Outras variantes dizem que o sangue deve ser humano, oferecido à criatura.

Como ninguém jamais teve a coragem ou o sucesso na empreitada, a cidade permanece encantada, servindo como uma explicação mítica para a beleza magnética e misteriosa daquela paisagem.

3. O Ciclo do Maranhão: A Ilha dos Lençóis e o Touro Rei

Viajando para o oeste, chegamos ao Maranhão, um estado onde o folclore é densamente povoado por entidades e “encantados”. Na região dos Lençóis Maranhenses, especificamente na Ilha dos Lençóis (município de Cururupu), a lenda da Cidade Encantada assume contornos históricos e monárquicos, ligando o Brasil diretamente à Europa do século XVI.

O Rei Dom Sebastião

Aqui, a lenda se funde com o Sebastianismo. Dom Sebastião, o rei de Portugal desaparecido na batalha de Alcácer-Quibir em 1578, não teria morrido. Segundo a crença popular maranhense, ele se “encantou” e escolheu as areias alvas dos Lençóis para fundar seu reino oculto.

Na lenda local, o Rei vive em uma cidade submersa ou subterrânea sob as dunas. Mas sua forma não é humana: ele vaga pelas praias nas noites de sexta-feira na forma de um Touro Negro gigantesco, com uma estrela brilhante na testa (ou chifres de ouro).

A Condição da Libertação

A lenda do Touro Encantado é trágica. O Rei-Touro deseja desesperadamente ser desencantado para retomar seu trono e erguer sua cidade de cristal, trazendo a “Idade do Ouro”. Para isso, alguém deve ter a coragem de ferir a estrela em sua testa. O problema é que a figura do touro é aterrorizante, e todos que o encontram fogem. Assim, o Rei continua seu exílio, vagando solitário pelas dunas, um monarca sem súditos visíveis, guardando um império de areia.

4. O Ciclo do Sertão: A Pedra do Reino e o Messianismo

É no sertão de Pernambuco e da Paraíba que a lenda da Cidade Encantada deixa de ser apenas um conto folclórico e se torna o motor de movimentos sociais, tragédias históricas e obras-primas literárias. Aqui, a “Cidade Encantada” não é apenas um lugar, é uma promessa religiosa.

A Pedra Bonita e o Massacre (1838)

Na Serra do Catolé (São José do Belmonte – PE), erguem-se dois grandes monólitos conhecidos como Pedra Bonita. No século XIX, surgiu ali um movimento messiânico liderado por beatos que pregavam o retorno de Dom Sebastião. Eles acreditavam que a Pedra Bonita era a porta de entrada para a Cidade Encantada do rei.

A lenda tomou um rumo sombrio quando se espalhou a crença de que a cidade só surgiria se a pedra fosse “lavada com sangue”. Isso levou ao trágico episódio do massacre da Pedra Bonita, onde dezenas de pessoas foram sacrificadas (ou se sacrificaram) na esperança de ver o rei surgir e a pobreza do sertão ser substituída pela riqueza do reino encantado.

A Pedra do Reino na Literatura

Essa lenda foi imortalizada e ressignificada pelo escritor Ariano Suassuna em sua obra máxima, “O Romance d’A Pedra do Reino e o Príncipe do Sangue do Vai-e-Volta”. Suassuna transformou a lenda da Cidade Encantada em um símbolo da identidade nordestina: uma mistura de realeza ibérica, cultura sertaneja, loucura e beleza. Para Suassuna, a Cidade Encantada é a metáfora da cultura brasileira que resiste, nobre e soberana, sob a poeira da história oficial.

5. Origens e Sincretismo: De onde vêm essas cidades?

A onipresença da lenda da Cidade Encantada no Brasil é fruto de um “encontro de águas” mitológico. Não há uma origem única, mas sim três grandes vertentes que se fundiram:

5.1 A Herança Ibérica e Moura

Os portugueses trouxeram para o Brasil as lendas das “Mouras Encantadas” — princesas transformadas em serpentes que guardavam tesouros, uma herança da ocupação árabe na Península Ibérica. Além disso, trouxeram o Sebastianismo, a esperança messiânica de um rei salvador. Essas narrativas encontraram solo fértil no Brasil colônia.

5.2 A Terra Sem Males Indígena

Os povos Tupi-Guarani já possuíam o mito da “Terra Sem Males” (Yvy Marãey), um lugar físico, mas sagrado, onde não haveria fome, guerra ou morte, e que poderia ser alcançado em vida através de rituais e caminhadas. Quando os europeus falaram de cidades de ouro e reinos encantados, isso ressoou com a busca indígena pelo paraíso terrestre.

5.3 A Resistência Africana e o Quilombismo

Em algumas regiões, as lendas de cidades ocultas na mata se misturam com a realidade histórica dos Quilombos. Lugares de liberdade e fartura, escondidos e protegidos por “magia” (conhecimento do terreno), reforçaram o arquétipo do lugar secreto onde a opressão não entra.

6. A Simbologia Psicológica: Por que precisamos da Cidade Encantada?

Por que, séculos depois, ainda contamos essas histórias? A Cidade Encantada cumpre uma função psicológica vital.

  • A Negação da Escassez: Em regiões marcadas pela seca (Sertão) ou pelo isolamento (Amazônia e Lençóis), a lenda projeta uma realidade inversa de abundância absoluta. Onde há areia, a lenda coloca ouro; onde há fome, a lenda coloca banquetes eternos.

  • Justiça Cósmica: As cidades são quase sempre habitadas por nobres, reis e princesas. Isso confere uma dignidade “aristocrática” ao local e ao seu povo. O sertanejo não se vê apenas como um sofredor, mas como o guardião de um reino adormecido. Ele é um súdito à espera de seu rei.

  • O Potencial Latente: A lenda diz que a riqueza está logo ali, sob os pés, atrás da duna, no fundo do rio. Isso cria uma sensação de esperança permanente. O futuro glorioso não está longe geograficamente, está apenas oculto dimensionalmente.

7. O Legado Cultural e Turístico

Hoje, a lenda da Cidade Encantada é um motor de identidade e economia.

  • Turismo Místico: Em São Tomé das Letras (MG), Alto Paraíso (GO) e na própria Jericoacoara (CE), o turismo se nutre da aura de mistério. Visitantes vão não apenas pelas paisagens, mas pela “energia” e pela possibilidade de estar pisando em solo sagrado.

  • Festas Populares: A Cavalgada à Pedra do Reino, em São José do Belmonte, é um evento anual que celebra a memória do movimento sebastianista, misturando fé, teatro e história, mantendo viva a narrativa.

  • Aproximação com a Ufologia: Curiosamente, nas últimas décadas, a lenda da Cidade Encantada tem se modernizado e se fundido com relatos ufológicos. Em locais como a Serra do Roncador (MT) e a Chapada dos Veadeiros, as “cidades subterrâneas” (como a lendária civilização de Agharta ou Ratanabá) são agora vistas por muitos como bases intraterrenas ou alienígenas. O mito se adapta: o rei encantado vira o ser de luz; o palácio de ouro vira a nave de cristal.

Conclusão

A Cidade Encantada não é um ponto no mapa, mas um estado de espírito da cultura brasileira. Ela representa a nossa capacidade inesgotável de sonhar com um “outro Brasil” — mais justo, mais rico e mais mágico — que existe em latência, esperando apenas o gesto certo para despertar.

Seja na forma da princesa-serpente de Jericoacoara, do touro-rei dos Lençóis ou da corte sangrenta da Pedra do Reino, essas lendas nos ensinam sobre a resistência da imaginação. Elas nos lembram que, para o povo brasileiro, a realidade dura e crua nunca foi suficiente; foi preciso construir, tijolo por tijolo de sonho, cidades inteiras de ouro sob o chão que pisamos.

Divulgar e ensinar sobre a Cidade Encantada é, portanto, mais do que falar de folclore; é validar a esperança e a criatividade poética que formaram a alma do Brasil profundo. Que continuemos ouvindo o badalar dos sinos submersos e procurando o brilho do ouro nas dunas, pois é nessa busca que reside a beleza de nossa identidade.

Apêndice: Principais "Cidades Encantadas" do Brasil

Para fins didáticos, pode-se categorizar as lendas por região:

Nome/LocalEstadoEntidade PrincipalCaracterística Chave
JericoacoaraCearáPrincesa SerpenteCidade sob o farol/dunas. Exige sangue para desencante.
Ilha dos LençóisMaranhãoRei D. Sebastião (Touro)O Rei vive sob as areias. Aparece como touro com estrela na testa.
Pedra do ReinoPernambucoD. SebastiãoLigada a movimento messiânico e massacre de 1838.
Lagoa do EncantoBahiaMúltiplasCidade submersa na lagoa, ouvem-se sinos e tambores.
Serra do RoncadorMato GrossoCivilização IntraterrenaLigada ao desaparecimento do Cel. Fawcett e misticismo moderno.
Cidade de ZiguratsMato Grosso do Sul“ET Bilu” / UrandirVersão contemporânea/ufológica do mito da cidade oculta.