O folclore brasileiro é um mosaico vibrante, construído sobre a confluência de narrativas indígenas, africanas e europeias. Enquanto figuras como o Saci-Pererê, a Mula Sem Cabeça e o Curupira dominam o imaginário nacional popularizado, existem lendas regionais de profunda densidade simbólica que permanecem, muitas vezes, restritas aos seus locais de origem. Entre as coxilhas onduladas do Rio Grande do Sul e a vastidão dos pampas, reside uma das criaturas mais fascinantes e enigmáticas da nossa mitologia: o Boi Vaquim.
Diferente das festividades coloridas do Bumba Meu Boi no Norte e Nordeste, a lenda do Boi Vaquim carrega a sobriedade e o mistério característicos do folclore gaúcho. Ela não fala de morte e ressurreição festiva, mas sim do inalcançável, da ganância humana e da força indomável da natureza. Este artigo propõe-se a desvelar as camadas desta narrativa, explorando suas origens, sua narrativa canônica, sua simbologia e a importância de sua preservação para a identidade cultural do sul do Brasil.
A lenda do Boi Vaquim é, em essência, um conto sobre um animal sobrenatural que habita os recônditos mais isolados dos campos gaúchos. Segundo a tradição oral, perpetuada brilhantemente pelo escritor João Simões Lopes Neto, o Boi Vaquim não é um animal comum. Ele é descrito como um touro de porte gigantesco, cuja pelagem não se define facilmente — ora parece escura como a noite, ora brilha como brasa.
Entretanto, suas características mais marcantes, aquelas que alimentam a cobiça dos homens, são as suas aspas (chifres). Diz a lenda que o Boi Vaquim possui chifres de ouro puro (ou, em algumas versões, de diamante), que reluzem sob o sol e a lua, servindo como um farol de riqueza inestimável. Além disso, ele carrega um cincerro (sino) de prata no pescoço, cujo badalar melancólico e hipnótico pode ser ouvido a léguas de distância, atraindo vaqueiros e caçadores para perdição.
A estrutura narrativa da lenda segue quase sempre um padrão trágico para o caçador. O gaúcho, montado em seu melhor cavalo, ouve o sino ou avista o brilho dourado dos chifres. Movido pelo desejo de captura e pela promessa de riqueza infinita, ele inicia a perseguição. O Boi Vaquim permite a aproximação; ele não corre desesperadamente como uma presa assustada. Ele trota com majestade, mantendo uma distância constante, zombando do esforço do laçador.
Quando o vaqueiro finalmente prepara o laço e sente que a captura é iminente, o sobrenatural se manifesta. Em algumas versões, o Boi Vaquim simplesmente desaparece no ar, deixando apenas o cheiro de enxofre. Na versão mais dramática e conhecida, o animal revela ter asas. Ele levanta voo diante dos olhos incrédulos do perseguidor, subindo aos céus ou mergulhando em lagoas profundas e inacessíveis, levando consigo o ouro e a sanidade do caçador.
Para compreender o Boi Vaquim, é imperativo visitar a obra de João Simões Lopes Neto (1865-1916). Considerado o maior autor regionalista do Rio Grande do Sul, Simões Lopes Neto foi um antropólogo intuitivo. Em sua obra “Lendas do Sul” (1913), ele não apenas registrou, mas deu forma literária à oralidade gaúcha.
Antes de Simões, o Boi Vaquim existia como “causo” de galpão, histórias contadas ao redor do fogo de chão enquanto se tomava chimarrão. O autor codificou a lenda, inserindo-a no panteão da literatura brasileira. A lenda reflete o período histórico das Vaquerias, época em que o gado xucro (selvagem) corria livre pelos pampas antes da demarcação rígida das estâncias.
Há indícios de que a lenda tenha raízes ainda mais profundas, ligadas ao período das Missões Jesuíticas. A região das Missões, palco de uma civilização próspera destruída por guerras, deixou para trás tesouros enterrados e rebanhos dispersos. O “ouro” dos chifres do Boi Vaquim pode ser uma metáfora para o “ouro das Missões”, a riqueza perdida dos Jesuítas e Guaranis que, segundo o imaginário popular, ainda está oculta sob o solo gaúcho (a lenda da Teiniaguá e do Negrinho do Pastoreio também tangenciam esse tema de tesouros perdidos).
Por que um boi? E por que ouro? A análise simbólica do Boi Vaquim revela muito sobre a psicologia e a economia da sociedade que criou o mito.
O Rio Grande do Sul formou-se economicamente sobre o couro e a carne. O boi não era apenas um animal; era a moeda, o sustento e a razão de viver do gaúcho. Elevar o boi à categoria de ser mágico é uma consequência natural de uma sociedade pastoral. O Boi Vaquim é a representação máxima desse rebanho: ele é o “Boi Supremo”, inatingível e perfeito.
Os chifres de ouro representam a ambição desmedida. A lenda funciona como uma fábula moral. Aquele que persegue o Boi Vaquim não busca o sustento (carne), mas sim a riqueza fácil e o poder (ouro). A incapacidade de capturá-lo — e a fuga do animal para os céus — simboliza que certas riquezas da natureza não podem ser possuídas pelo homem. A natureza (o Boi) é soberana sobre a vontade humana.
Em muitas variantes, o Boi Vaquim não é o tesouro em si, mas o guardião dele. Ele aparece em locais onde haveria “botijas” (dinheiro enterrado). Sua presença é um aviso: aquele solo é sagrado ou maldito. O brilho de seus chifres ilumina a escuridão da noite, servindo como um farol traiçoeiro que guia os homens não para a salvação, mas para o abismo de sua própria cobiça.
É interessante notar como a figura do boi é recorrente na mitologia mundial e nacional, mas assume facetas distintas.
Bumba Meu Boi (Norte/Nordeste): Aqui, o boi é festivo, morre e ressuscita. É uma celebração cíclica, colorida, ligada à devoção a São João e à crítica social. O boi é um personagem de teatro, humanizado e querido.
Minotauro (Grécia): Um monstro, uma punição divina, metade homem, metade touro. Representa a bestialidade escondida no labirinto da mente humana.
Boi Vaquim (Sul): Difere drasticamente de ambos. Ele é etéreo, fantasmagórico e solitário. Não há festa ao seu redor, apenas silêncio e o som do vento minuano. Ele não interage com o homem socialmente (como no Bumba meu Boi) e não é um monstro devorador (como o Minotauro); ele é uma entidade de fuga e mistério.
Essa comparação destaca a singularidade da cultura gaúcha, forjada na solidão dos vastos campos, onde o homem passava dias ou semanas sem ver outro ser humano, tendo apenas o gado e o cavalo como companhia. O medo e o respeito nascem dessa solidão.
Hoje, a lenda do Boi Vaquim corre o risco de esquecimento. A urbanização do Rio Grande do Sul e a mudança no perfil econômico — da pecuária extensiva para a agricultura de soja mecanizada — alteraram a relação do homem com o campo. O “causo” contado ao redor do fogo foi substituído pela televisão e pela internet.
No entanto, a figura do Boi Vaquim sobrevive em manifestações artísticas. Músicos nativistas frequentemente citam o mito em canções que exaltam a identidade gaúcha. Artistas plásticos retratam o touro alado sobrevoando as coxilhas. Ele se tornou um símbolo de resistência da cultura tradicional frente à globalização.
Além disso, a lenda possui um potencial turístico e educacional imenso. Cidades do interior gaúcho poderiam explorar mais essa narrativa em festivais de folclore, não apenas focando nas danças tradicionais, mas na contação de histórias. Ensinar sobre o Boi Vaquim nas escolas é ensinar sobre a história da formação do estado, sobre a geografia dos pampas e sobre a ética na relação com a natureza.
A lenda do Boi Vaquim não é apenas uma história de fantasma para assustar crianças ou entreter viajantes. Ela é um Patrimônio Cultural Imaterial. Ela encerra em si a cosmovisão do homem do campo do século XIX e início do século XX.
Ao analisarmos a lenda, aprendemos sobre:
Geografia: A imensidão dos campos que permitia a existência de “animais inalcançáveis”.
Valores: A coragem do laçador versus a punição pela ganância.
Linguagem: O vocabulário rico do gaúcho (aspa, cincerro, pago, querência).
Preservar a memória do Boi Vaquim é garantir que as futuras gerações compreendam que o Brasil não é monolítico. O Brasil é um país de muitos países, e o Sul, com seus invernos rigorosos e suas lendas silenciosas, contribui com uma peça fundamental para este quebra-cabeça nacional.
O Boi Vaquim permanece lá, no imaginário das coxilhas, voando baixo nas noites de cerração ou brilhando seus chifres de ouro sob a luz do luar. Ele nos lembra que, por mais que a tecnologia avance e mapeie cada centímetro do território via satélite, sempre haverá espaço para o mistério na alma humana.
Para a comunidade brasileira, conhecer o Boi Vaquim é um convite para olhar para o Sul com novos olhos. É um convite para respeitar a tradição oral e entender que, por trás de cada lenda, existe a história real de um povo, seus medos, seus sonhos e sua incessante busca por algo que transcenda a realidade cotidiana. Que o cincerro de prata do Boi Vaquim continue a badalar em nossa memória cultural, não para nos perder, mas para nos guiar de volta às nossas raízes.