A Lenda do Minhocão do Pari

No coração do Brasil, onde o Pantanal começa a desenhar seus contornos e os rios ditam o ritmo da vida, existe uma fronteira líquida entre a história oficial e o mito. O Rio Cuiabá, artéria vital que banha a capital de Mato Grosso, não transporta apenas peixes e embarcações; ele carrega em seu leito barrento séculos de narrativas orais. Entre todas as criaturas que povoam o imaginário ribeirinho mato-grossense, nenhuma possui a magnitude geológica e o terror primordial do Minhocão do Pari.

Diferente de lendas que habitam florestas distantes, o Minhocão é uma ameaça urbana e fluvial. Ele é uma lenda que vive “embaixo dos pés” da civilização. Diz a tradição que esta serpente-verme colossal habita as profundezas do rio, especificamente na região do Pari (um bairro e região de pesca tradicional em Várzea Grande/Cuiabá), estendendo seus túneis até o centro histórico da capital.

Este artigo propõe-se a desenterrar as camadas de lama e mistério que cobrem o Minhocão do Pari. Analisaremos sua morfologia monstruosa, suas conexões com a fé católica, as hipóteses criptozoológicas que tentaram explicá-lo no século XIX e seu papel fundamental na explicação dos fenômenos naturais da região.

1. Anatomia de um Monstro Fluvial

Para compreender o medo que o Minhocão inspira, é preciso primeiro visualizá-lo. O Minhocão do Pari não é uma minhoca de jardim agigantada. Nos relatos dos pescadores mais antigos (“os curaleiros”), ele é descrito como um ser anfíbio de proporções titânicas, uma quimera grotesca que mistura características de ofídio (cobra) e anelídeo (verme).

1.1 Características Físicas

Sua pele é descrita como escura, quase negra ou de um verde-musgo profundo, coberta por um muco espesso que facilita seu deslizamento pela lama do leito do rio. O corpo é cilíndrico e anelado, mas com uma espessura capaz de derrubar canoas com um simples movimento de cauda.

O traço mais aterrorizante, contudo, é sua cabeça. Diferente da Boiúna amazônica, que muitas vezes possui olhos de fogo, o Minhocão é frequentemente descrito como uma criatura cega ou de visão precária, guiando-se pelas vibrações na água e na terra (condizente com animais fossoriais). Sua boca é uma caverna circular, capaz de engolir bois inteiros, cavalos e, infelizmente, pescadores desavisados.

1.2 O Comportamento Destrutivo

O Minhocão não é um predador que caça ativamente na superfície o tempo todo. Ele é um “escavador”. A lenda diz que ele constrói galerias subterrâneas gigantescas que conectam o leito do Rio Cuiabá até o subsolo das igrejas e prédios históricos da cidade. Quando ele se move, a terra treme, barrancos desmoronam (o fenômeno das “terras caídas”) e rodamoinhos surgem na água, sugando tudo para o fundo.

2. A Lenda e a Fé: O Fio de Cabelo da Santa

O aspecto mais fascinante do Minhocão do Pari é a sua conexão intrínseca com a religiosidade cuiabana. Não se trata apenas de um monstro selvagem; é um monstro “contido” pelo sagrado.

2.1 A Profecia da Catedral

Existe uma crença secular em Cuiabá de que o Minhocão dorme exatamente debaixo da Igreja de São Benedito (ou, em algumas versões, da Catedral Basílica do Senhor Bom Jesus ou da Igreja de Nossa Senhora do Rosário). A lenda narra que a criatura cresceu tanto que seu corpo se estende por baixo de toda a cidade.

O que impede o Minhocão de se mexer e afundar Cuiabá inteira numa cratera de lama? A tradição oral afirma que a besta está amarrada. E não é por correntes de ferro, que enferrujariam na umidade, mas por três fios de cabelo de Nossa Senhora.

2.2 O Apocalipse Cuiabano

A tensão narrativa da lenda reside na fragilidade dessa prisão. Dizem os mais velhos que dois desses fios já se romperam ao longo dos séculos (explicando grandes enchentes ou tremores passados). Resta apenas um fio. O dia em que o último fio de cabelo da Santa se partir — seja pelo pecado dos homens ou pelo tempo — o Minhocão despertará furioso, derrubará as igrejas e a cidade de Cuiabá será engolida pelas águas e pela terra, voltando a ser leito de rio.

Essa versão da lenda transforma o monstro em um instrumento de moralidade: a cidade permanece de pé pela graça divina, por um “fio”, literalmente.

3. Origens Míticas: Como Nasce um Minhocão?

Se o Minhocão vive sob a cidade, de onde ele veio? As narrativas de origem variam, misturando tragédia familiar e maldições, típicas do folclore luso-brasileiro.

3.1 O Filho Rejeitado

Uma das versões mais populares conta a história de uma jovem moça que engravidou de forma misteriosa (ou de um amor proibido) e, temendo o julgamento social, ocultou a gravidez. Ao dar à luz na beira do rio, a criança não parecia humana — tinha uma aparência disforme, alongada.

Horrorizada ou desesperada, a mãe jogou a criatura nas águas do Rio Cuiabá. A criança não morreu. Ela sobreviveu, alimentou-se da força do rio e do ódio pelo abandono, crescendo desmesuradamente até se tornar o Minhocão. Aqui, o monstro é a encarnação da culpa e do segredo social.

3.2 O Pato Monstruoso

Outra vertente folclórica curiosa da região do Pari fala de um “pato” ou uma ave aquática que teria sido enfeitiçada ou cruzado com uma serpente, transformando-se ao longo dos anos nesse verme gigante. No entanto, a versão do “filho amaldiçoado” tende a ter mais força dramática na cultura local.

4. Minhocão na História e na Ciência: Criptozoologia do Século XIX

O que torna a lenda do Minhocão singular no Brasil é que ela foi levada a sério por cientistas e exploradores europeus no século XIX. Não era vista apenas como “história de pescador”, mas como um possível animal desconhecido pela ciência (criptídeo).

4.1 Auguste de Saint-Hilaire e Outros Exploradores

O naturalista francês Auguste de Saint-Hilaire, em suas viagens pelo Brasil, registrou relatos sobre o “Minhocão”. Embora os relatos que ele ouviu fossem mais focados em Minas Gerais e Goiás (descrevendo uma minhoca terrestre gigante), a fama da criatura se estendia por todo o Centro-Oeste.

Jornais científicos da época, como o American Journal of Science (em artigo de 1878 escrito por Fritz Müller), debateram a existência do animal. Especulava-se que poderia ser:

  1. Um Peixe-Pulmonado Gigante (semelhante à Lepidosiren paradoxa, a Piramboia), que vive na lama.

  2. Um remanescente de Gliptodonte (mamífero pré-histórico encouraçado), embora isso não explique a forma de verme.

  3. Uma Cecília Gigante (anfíbio sem patas, semelhante a uma cobra ou minhoca).

4.2 A Realidade Geológica

Do ponto de vista científico moderno, o Minhocão é uma explicação mitológica perfeita para a geologia instável das margens dos rios da Bacia do Paraguai e Cuiabá. O fenômeno das “terras caídas”, onde grandes pedaços da margem colapsam subitamente criando ondas e barulho, precisa de uma causa. Para o ribeirinho pré-científico, a causa mais lógica é a movimentação de um animal gigante sob a terra. O Minhocão é, portanto, a metáfora da erosão fluvial.

5. O Minhocão vs. A Boiúna (Cobra Grande)

É comum confundir o Minhocão do Pari com a Boiúna da Amazônia, mas existem diferenças cruciais que denotam as identidades regionais distintas.

CaracterísticaMinhocão do Pari (Mato Grosso)Boiúna / Cobra Grande (Amazônia)
FormaVerme/Serpente cilíndrica, escura, cega.Serpente gigantesca, olhos de fogo/farol.
HabitatSubterrâneo, leito do rio, embaixo da cidade/igrejas.Fundo dos rios, superfície (ataca barcos).
OrigemCriança rejeitada, castigo divino.Varia (Norato e Maria Caninana, encantados).
PoderDerrubar barrancos, afundar a cidade.Transformar-se em barco, seduzir, controlar tempestades.
SimbolismoTerremoto, erosão, fim do mundo (apocalipse religioso).Mistério da navegação, encantamento, perigo da mata.

O Minhocão é mais “terrestre” e fossorial, mais ligado à terra que treme do que à água que navega.

6. O Bairro do Pari e a Identidade Local

A lenda carrega o sobrenome de uma região: Pari. O Pari é um bairro de Várzea Grande, na região metropolitana de Cuiabá, historicamente habitado por pescadores. O termo “Pari” refere-se originalmente a uma armadilha de pesca indígena feita de taquara.

Para a comunidade do Pari, o Minhocão não é apenas um monstro; é um “vizinho” perigoso. Ele faz parte da identidade local. As histórias de canoas viradas e de sumiços no rio são atribuídas a ele. Isso gera uma cultura de respeito extremo pelo rio. Ninguém no Pari subestima a correnteza ou os “rebojos” (redemoinhos), pois sabem que podem ser o suspiro da besta.

A lenda atua como um agente de segurança: as crianças aprendem desde cedo a não brincar nas margens instáveis e a não nadar em locais profundos, pois “o Minhocão pode pegar”.

7. O Minhocão na Cultura Contemporânea

Embora a urbanização de Cuiabá e Várzea Grande tenha aterrado muitos córregos e afastado a população do convívio diário com o rio, o Minhocão sobrevive na cultura pop e na arte.

  • Literatura: Poetas e escritores mato-grossenses, como Silva Freire e Manoel de Barros (embora este mais focado no Pantanal geral), tangenciam o universo mítico das águas. A lenda é registrada em inúmeras antologias de folclore do Centro-Oeste.

  • Turismo: A história do monstro preso sob a igreja é um ponto alto nos city tours pelo centro histórico de Cuiabá. Guias turísticos narram a lenda ao visitar a Igreja do Rosário e São Benedito, adicionando uma camada de misticismo à arquitetura colonial.

  • Cinema e Audiovisual: Curtas-metragens de animação e documentários regionais frequentemente revisitam o tema, usando o Minhocão como metáfora para questões ambientais (a poluição do Rio Cuiabá “acordando” o monstro).

8. A Importância da Preservação da Lenda

Em um mundo dominado pela tecnologia e pela informação instantânea, por que preservar a história de uma minhoca gigante?

  1. Conexão com a Natureza: A lenda nos lembra que a cidade de Cuiabá foi construída sobre um ecossistema vivo e dinâmico. O Rio Cuiabá não é um mero canal de esgoto ou água; é uma força poderosa que, se desrespeitada (enchentes, erosão), pode “contra-atacar”. O Minhocão é a face vingativa da natureza.

  2. Patrimônio Imaterial: As lendas são a alma de um povo. O “sotaque”, o “jeito de ser” cuiabano, com sua profunda religiosidade misturada com crendices ribeirinhas, está encapsulado nessa narrativa.

  3. Resistência Histórica: Manter a lenda viva é manter viva a memória das populações ribeirinhas, indígenas e negras (devotas de São Benedito) que formaram a base cultural de Mato Grosso, muitas vezes à margem da história oficial dos bandeirantes.

Conclusão

O Minhocão do Pari continua lá, nas profundezas barrentas da memória cuiabana. Se ele é um animal pré-histórico sobrevivente, uma alucinação coletiva causada pelo calor dos trópicos, ou a personificação dos medos geológicos de uma cidade fluvial, não importa.

O que importa é que ele cumpre sua função: mantém o rio sagrado, mantém a cidade alerta e mantém as igrejas cheias de fiéis que, no fundo, rezam para que o último fio de cabelo de Nossa Senhora permaneça intacto.

Para quem visita Cuiabá ou Várzea Grande, olhar para as águas calmas e escuras do rio ganha um novo significado ao conhecer a lenda. Aquela onda que quebrou na margem sem motivo aparente, ou aquele tremor sutil no chão ao passar perto da Catedral… seria apenas a acomodação do solo, ou seria o gigante do Pari se espreguiçando em seu sono eterno? Na dúvida, é melhor respeitar o rio.